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Spring Love

SPRING LOVE

Materiais artísticos ou apropriados do circuito comercial são hibridizados por Bruno Miguel nas séries mostradas em Spring Love: pinturas sobre tecidos populares estampados e gobelins decorativos, mudas de plantas reais, plantas e maquetes de árvores moldadas em porcelana fria, mesinhas, quebra-cabeças, sementes, acrílico, terra, madeira de chassis, lâmpada, porta de geladeira, pôsteres, vasos de metal. Essa diversidade, no entanto, não deve nos confundir. Todos esses trabalhos são, de fato, expansões da pintura ou transbordamentos dos limites do quadro para o espaço real.

Longe de contradizer esse extravasamento de campo, as telas de Bruno constituem o norte de seu processo criativo, já que consagram o pictórico como ponto de partida (e núcleo poético) do conjunto de sua produção.

Os suportes sobre os quais ele pinta – lonas vinílicas de toldos, têxteis estampados etc. –, sempre apropriados de outros circuitos (como o comércio ou, simplesmente, achados nas ruas), não são, portanto, um campo neutro a ser trabalhado do zero. Essas telas trazem para as pinturas as marcas de suas funções anteriores e as reminiscências afetivas de sua existência prévia, numa lógica inversa à das demais obras. Aqui não é mais a pintura que transborda o campo do quadro para o espaço real; são alguns materiais de nosso cotidiano, tais como tecidos estampados, que invadem esse campo para formar o próprio plano pictórico, numa ação de contaminação recíproca, que evoca não somente alguns procedimentos cubo-futuristas (colagem), mas também as combine paintings de Rauschenberg, produzidas na metade da década de cinquenta.

Por outro lado, a expansão do campo pictórico para o próprio espaço traz à tona, por exemplo, o pioneirismo de Hélio Oiticica, cuja obra foi marcada pela busca de uma pintura depois do quadro (tal como deixou registrado em texto escrito em 16 de abril de 1962, posteriormente publicado em Aspiro ao grande labirinto). Nestes trabalhos de Bruno Miguel, no entanto, a questão é mais específica.

Trata-se, com a devida licença, de paisagens depois do quadro, investigadas e produzidas pelo artista como um desafio poético e especulativo fora do quadro de referências históricas nas quais nasceu e se desdobrou como gênero da pintura ocidental./

O desenvolvimento da perspectiva, na Renascença, favoreceu o desenvolvimento da arte da paisagem. Pela primeira vez na história da pintura tornou-se possível criar a ilusão de profundidade em um espaço bidimensional a partir de um padrão óptico codificado pela geometria euclidiana. Inicialmente demarcava-se o lugar da cena entre a base inferior do quadro, a linha de terra (primeiro plano), e a linha do horizonte, infinito visual para onde as todas paralelas convergiam em direção a um ou mais pontos de fuga.

Albrecht Dürer (1471-1528) foi o primeiro artista a pintar paisagens autônomas, isto é, a criar representações de vistas naturais e urbanas que não servissem de fundo (cena) para a presença humana e animal. Entre sua época e a segunda metade do século XIX, a paisagem tornou-se não somente tema de si mesma, mas também um campo de investigação fundamental para a consolidação da autonomia da esfera plástico-formal em relação ao tema, conquistada pela Arte Moderna.

Esse contexto histórico informa e referencia as especulações de Bruno Miguel a respeito de uma paisagem expandida para além do quadro. Repertórios tradicionais combinados com a apropriação de objetos emprestam sentido ao processo desse artista: a quebra da linha do horizonte, a requalificação das coisas do cotidiano como matéria pictórica e, até mesmo, a transformação do espaço da galeria numa paisagem arranjada a partir das interseções provisórias de suas séries são possibilidades inseparáveis da história da paisagem ocidental.

O sentido poético desses trabalhos, no entanto, não se esgota na busca de maneiras alternativas de pintar. Eles assimilam, simultaneamente, outros níveis semânticos suscitados por reminiscências pessoais do artista, tais como algumas obras do neoexpressionismo alemão, os filmes de Stanley Kubrick e Quentin Tarantino, nomes de músicas (o título da mostra, Spring Love, é uma apropriação do nome de uma canção de Steve B., do funk melody norte-americano) e de ícones urbanos grafitados nos muros da zona norte do Rio de Janeiro, que ampliam a compreensão de seu trabalho para limites situados muito além do questionamento de um gênero específico da pintura clássica.

Junto a essas obras com nomes mais subjetivos ou populares, existem trabalhos de Bruno tais como Desentendendo Rothko, as quatro Pinturas de Museu – Paisagem Stricto Sensu (Guggenheim Bilbao, Tate Modern, MAM-RJ e MAC-Niterói), sobre gobelins, diretamente referidos à arte, além de outros – Celebrando os Maias e Lembrança da viagem de Robert Crumb à serra de Itaipava etc. – remetidos à cultura e à história num sentido mais abrangente.

Ao expandir a pintura para além do quadro – considerado não só em sua dimensão planar e simbólica, como também em suas conexões com a vida e com as experiências ou os conhecimentos pessoais do artista –, Bruno Miguel reafirma esse meio ancestral como algo vivo e conectado aos problemas e às questões da produção contemporânea.

Fernando Cocchiarale

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